Artificial intelligence

Estado à Prova: Ou mudamos agora, ou ficamos para trás

Portugal precisa de um Estado que responda, simplifique e inove. A reforma não pode esperar: tecnologia, talento e coragem são as armas para romper com o passado.


A reforma do Estado está na ordem do dia. E ela é, de facto, crítica e inadiável - o serviço público deve ser, nos dias de hoje, eficiente e sofisticado, respondendo às crescentes exigências de cidadãos e empresas, mas também ágil e adaptável à cada vez maior volatilidade de um contexto externo que obriga ao reforço de cada país.

Esta reforma vai exigir uma profunda reflexão, que permita um entendimento claro dos objetivos estratégicos e do caminho a seguir. E mais do que racionalizar estruturas e eliminar serviços duplicados, a grande transformação deverá acontecer no paradigma de serviço público onde nos queremos posicionar - e que deve passar de um modelo focado nos processos e burocracia, para um modelo focado no cidadão e empresas ao longo dos seus ciclos de vida, bem como nos seus colaboradores, força motriz de toda a máquina.

Olhar o serviço público a partir do seu destinatário último, implica redesenhar a forma de interação entre o estado e o cidadão / empresas, devendo ser o estado a ir ao encontro do seu “cliente”, e não o contrário, como muitas vezes acontece atualmente. Há que criar pontos únicos de acesso, multicanal, que disponibilizem todos os serviços do estado, interoperáveis entre si, de forma a minimizar o número de interações necessárias para tratamento de casos, evoluindo-se progressivamente para uma abordagem one and only. Há que desburocratizar, encurtar prazos e simplificar validações.

Este serviço não deve viver por si mesmo, perdido nas suas ineficiências internas, mas sim enquadrado num ecossistema que deve integrar os diferentes atores - cidadão, empresas, colaboradores e parceiros - devendo o estado assumir-se como facilitador das interações que ocorrem no contexto do mesmo, recebendo e incorporando feedback de todos eles de uma forma continua e abrindo novos canais de ideação e inovação em que cada um deles é convidado a participar (i.e., workshops colaborativas, “gamificação”). Esta colaboração é essencial, e para que ela surja de forma natural, é crítico associar à reforma um programa de comunicação claro e transparente, que faça conhecer, desde início, as suas vantagens e o respetivo plano de execução, de forma a que todos se sintam incluídos e motivados a participar, criando uma onda nacional em torno das mudanças.

A implementação deste novo paradigma vai exigir coragem e resiliência, pois a necessária engenharia inversa implicará alterações profundas nos processos de base a esses serviços, nas estruturas de front e backoffice que os suportam, e nas próprias orgânicas de cada entidade do estado. É preciso equacionar serviços descentralizados, centros de competências e serviços partilhados, que promovam eficiências operacionais e ao mesmo tempo contribuam para a coesão territorial. Este modelo futuro deve partir de uma estrutura de metodologias e ferramentas comuns, que permita um mesmo entendimento sobre os fins e do caminho que cada um terá para lá chegar.

Esta transformação não pode ser, obviamente, alheia às capacidades que atualmente a tecnologia disponibiliza, devendo ser concebida, desde início, com incorporação destas novas ferramentas (cloud, inteligência artificial, arquiteturas interoperáveis). E claro, maximizando a utilização e a partilha da informação, de forma segura e responsável. O papel do CTO (Chief Technology Officer) do estado será determinante neste contexto, garantindo a uniformização de abordagens e um roadmap de transformação digital intrínseco aos novos serviços, que seja alinhado com a Estratégia Nacional Digital e as principais linhas da Década Digital da União Europeia. A tecnologia deve incorporar esses novos serviços, mas também contribuir como acelerador do próprio processo de mudança, apoiando funções de planeamento, desenho e monitorização.

Os organismos públicos terão que assumir esta missão com muita elevação, e os colaboradores do estado serão peça essencial. Por muito que se automatize e simplifique, não é possível repensar os processos sem atender aos seus executantes, devendo desenhar-se os novos procedimentos de forma adequada e centrada no colaborador.

O tema do talento é, aliás, crítico em todas as dimensões da reforma. O estado tem atualmente a sua população funcional enquadrada em escalões etários altos (segundo dados de junho de 2024, 66,5% dos trabalhadores tinham mais de 45 anos, sendo a idade média, a essa data, de 48,5 anos [i]), e a grande maioria dos organismos deverá ver muitos funcionários de saída nos próximos anos. É preciso, neste contexto, planear estas saídas de forma sustentada, garantindo que o conhecimento se mantém e transfere. Por outro lado, é necessário o exercício de atrair novo talento, num mercado cada vez mais disputado entre
público / privado e nacional / internacional. Os modelos de carreiras públicas têm que ser ajustados urgentemente, mais uma vez focando-se naquilo que move cada colaborador, com especial relevância nas novas gerações, que privilegiam fatores como a diversidade de experiências, aprendizagens contínuas e progressão e diferenciação por mérito.

Por fim, é crucial a implementação de um programa de capacitação para o digital para os colaboradores do estado, (aliás, para a sociedade em geral), devendo ponderar-se organismos como o INA e o IEFP para a liderança das iniciativas associadas ao capital humano e talento. Este é um pilar fundamental da reforma, pois só ele assegura que toda a transformação não conduz a uma maior exclusão social.

O Estado deverá contar com parceiros para levar a cabo esta jornada, única forma de garantir a abrangência e velocidade de execução que se pretende. E a este respeito, sejamos claros - o Código de Contratação Pública precisa ele próprio de ser reformado - a excessiva burocracia e o imbróglio administrativo a que muitos procedimentos vão sendo sujeitos, tem sido um dos maiores entraves à execução dos grandes projetos públicos, sendo gritante exemplo disso aqueles inscritos no PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), alguns que não viram ainda a luz do dia e/ou viram-na tardiamente devido a entropias contratuais.

O modelo de contratação tem obrigatoriamente que se tornar mais leve, sem colocar em causa, naturalmente, a transparência e equidade de mercado. Mas deve privilegiar a responsabilização dos dirigentes públicos nas decisões tomadas, mais do que onerar os parceiros / fornecedores com o peso burocrático. Por outro lado, deve dar espaço a modelos contratuais orientados aos resultados, em que parte do risco é transportado para os fornecedores, que serão remunerados em função do valor entregue.

O investimento nesta reforma será grande, sendo que o retorno deverá ser medido por critérios como a qualidade de serviço prestado, a redução de custos de contexto e a eficiência da própria máquina. Do ponto de vista meramente financeiro, os ganhos esperados poderão não ser tão imediatos. É por isso essencial garantir fontes de financiamento sustentáveis, que não se esgotem no orçamento de estado e/ou nas tradicionais linhas a fundo perdido, que se espera diminuam no atual contexto de maior exigência ao nível dos investimentos para as áreas da defesa.

Esta reforma deve ser apenas o início de um movimento estrutural de transformação e modernização do estado, que idealmente se torne intrínseco ao seu funcionamento. Uma nova forma de trabalhar e de olhar o serviço público.

A estratégia deve partir de orientações bem definidas, e a sua operacionalização deve ser acompanhada de forma contínua, assegurando um modelo de monitorização dos seus impactos face aos objetivos inicialmente estabelecidos. Esta monitorização deve funcionar a dois níveis – um primeiro, que meça constantemente o serviço público e as reformas já implementadas, e um segundo, que garanta que novas evoluções sejam testadas e avaliadas em termos de impacto burocrático e alinhamento com a abordagem global. Este será o principal alicerce de um modelo sistemático de avaliação de políticas públicas. Para um estado melhor - focado nas pessoas, alavancado pela tecnologia e impulsionando a colaboração.

 

[i] Boletim Estatístico do Emprego Público (BOEP), no site da DGAEP.

Resumo

A reforma do Estado é urgente e deve centrar-se no cidadão e nas empresas, promovendo serviços públicos mais ágeis, digitais e colaborativos. É necessário redesenhar processos, integrar tecnologia, como IA e cloud, e apostar na capacitação dos colaboradores. O talento é crítico, exigindo renovação geracional e novos modelos de carreira. A contratação pública deve ser mais eficiente e orientada a resultados. Esta transformação exige coragem, planeamento e parceiros estratégicos, com impacto medido pela qualidade do serviço e pela inclusão social. O Estado deve evoluir para um ecossistema moderno, centrado nas pessoas e na inovação contínua.

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