1. Como foi a sua jornada até se tornar membro de conselho de administração?
Eu demorei a ir para o mercado de capitais, já não tinha mais 20 anos. No começo, eu trabalhei na empresa do meu pai, de supermercados, durante anos, e aí quando eu quis sair do negócio da família, fui procurar emprego e consegui na Bolsa de Valores, como analista. Depois de um tempo, me tornei gerente de projetos especiais e depois superintendente. Em 2006 fui para a CVM como diretora, membro do Colegiado. E em 2007 me tornei presidente.
Uma das coisas que eu mais tenho orgulho de ter conseguido contribuir na vida foi a criação do Novo Mercado. Eu fiz parte do esforço de formulação do projeto e depois, quando já era diretora, fui responsável por implementar. O mercado brasileiro de capitais vivia uma situação de pasmaceira, sem empresas novas vindo, sem investidores novos se interessando. Era um mercado de arbitradores. E as empresas que queriam captar estavam fazendo listagem na Bolsa americana. Aqui tinha um problema grande de credibilidade, de percepção muito negativa por parte dos investidores. Houve uma tentativa de reforma da Lei das S.A.s, que não tinha ido até o ponto que se julgava necessário.
Então, tentamos fazer no lado privado uma iniciativa que pudesse dar confiança para os investidores, propondo para as empresas que assumissem compromissos baseados em um contrato que a Bolsa iria administrar, que garantisse mais equilíbrio e mais transparência na relação controlador-minoritário. Foi uma batalha, mas em algum momento começou a se mostrar correto e essa dinâmica começou a acontecer. O Brasil passou a ter um mercado de IPOs, um mercado para empresas novas, que nenhum outro país latino-americano conseguiu até hoje.
Eu saí da CVM em 2012 e – depois de ter tido muitos anos de exposição junto a empresários, a pessoas de empresas, investidores – eu recebi convites, e em 2013 comecei a trabalhar como conselheira de administração. Naquele momento, eu também não queria mais trabalho de executiva, das 8h às 20h. O primeiro convite para conselho de administração talvez tenha sido o da TOTVS, pelo Laércio Cosentino, que eu conheci ainda na Bolsa, quando ele abriu o capital da empresa dele.
2. Quais temas você dedica a maior parte do seu tempo enquanto membro de conselho de administração atualmente?
Sempre que eu me junto ao conselho de uma empresa, eu já deixo claro o meu interesse em fazer parte também do comitê de auditoria, ou quando não tem, do comitê de riscos. Porque pela minha experiência executiva esses são os temas em que eu posso contribuir mais. Faço questão de ver em mais detalhes e de ter um envolvimento constante e permanente nos temas de risco e de compliance.
3. Como foi a experiência de ter sido a primeira mulher a presidir a CVM e como isso moldou sua visão sobre a importância da diversidade e inclusão nos conselhos?
Eu espero que tenha sido inspirador para as meninas, para as moças, mas para mim, francamente, é mais um dos ambientes profissionais em que, como mulher, eu não era a maioria. Como eu era presidente, ficava mais fácil porque, ainda mais no serviço público, a hierarquia tem bastante peso.
No mercado, quando você é mulher, sabe que tem que se esforçar um pouco mais do que os homens para poder chegar no mesmo lugar. Tem que se provar mais, superar desconfianças. É intensivo. Na diretoria da Bolsa, também fui a primeira mulher no cargo de superintendente e a única naquele momento. E depois nos conselhos, em vários deles, eu era a única mulher.
Hoje em dia isso está muito melhor, mas os homens continuam sendo a imensa maioria em todos os ambientes em que trabalho, e continua sendo muito raro ver mulheres na presidência de empresas, que são as profissionais que naturalmente caminhariam, depois, para os conselhos. Então isso ainda é um obstáculo para vermos mais mulheres em conselhos, dada a progressão que seria natural.
A diversidade não só de gênero, mas nas suas várias dimensões é muito importante. Eu venho de um lugar diferente de onde vem a maioria dos meus colegas homens. O fato de eu ter vivido na minha carreira dificuldades diferentes das deles, ter tido que batalhar de forma diferente, ter uma outra perspectiva, traz riqueza. Quem vem de escola pública, ou de outros países, ou de outras profissões que não têm a ver necessariamente com administração de empresas ou finanças traz perspectivas diferentes.
Tem o fato de eu ter referências femininas, talvez mais do que meus colegas homens têm. Como a minha primeira chefe na Bolsa, que também foi minha primeira chefe mulher em geral, a Amarílis Sardenberg, que depois seguiu carreira em riscos, pós-trade, liquidação e custódia. Ela foi um grande exemplo para mim de liderança democrática, com uma abordagem que eu não conhecia até então: alguém que valorizasse a equipe e fizesse questão de dar espaço para que o trabalho de cada um fosse reconhecido. Não sei se por ser mulher ou não, francamente. Mas ela ganhou um valor para mim como modelo de que é possível liderar de outro jeito, foi muito interessante vê-la segura o suficiente para liderar equipes, para construir projetos e tudo mais desta forma, sem se basear no argumento da autoridade.
4. A partir de janeiro de 2026, começa a vigorar a Resolução CVM 193, de adoção obrigatória às companhias abertas, da divulgação dos riscos de prejuízos e oportunidades de lucro ligados à sustentabilidade (IFRS S1) e mudanças climáticas (IFRS S2). Você já presenciou mudanças nos conselhos de administração que participa para se adaptar a essas normas internacionais?
Eu vejo uma preocupação em geral em empresas que já divulgavam relatórios de sustentabilidade, acompanhar as tendências e divulgar de acordo com padrões reconhecidos e recomendados. Agora sendo uma norma, e sobretudo tendo que ser auditados os relatórios que vão cumprir com esses dois padrões, o maior foco é produzir informações que possam ser certificadas e asseguradas por uma empresa de auditoria, conforme vai ser exigido. E, claro, adaptar o padrão de divulgação exatamente ao que a norma pede.
Eu concordo com a crença geral de que “reporting drives behavior” (ter de divulgar direciona a ajustes de comportamento). O fato de ter que olhar essas realidades refletidas em números pode trazer a atenção de empresas que não estavam suficientemente ligadas ao tamanho do risco dos impactos das mudanças climáticas.
Na época em que eu estava na Fundação IFRS, era enorme a demanda de governos e de entidades privadas de investidores por um padrão único de divulgação dessas informações de sustentabilidade, e não uma coisa fragmentada como é o cenário que a gente ainda vê. Então, essa nova exigência vai trazer frutos, sem a menor dúvida.
5. O Brasil preside a COP30, com duas semanas de evento em Belém, em novembro. A Conferência das Nações Unidas para as Mudanças Climáticas é um tema para os conselhos de administração?
É claro que é uma negociação importante e tem bastante preocupação em geral na comunidade empresarial com a falta de coordenação de uma ação mais firme na direção de controlar emissões e de enfrentar a emergência climática como é preciso. Mas pelo menos nos setores em que eu estou próxima não é a COP30 que é um grande assunto. Não quer dizer que não haja envolvimento, inclusive participação e até um esforço de trazer o assunto para os clientes. Esse não é mais um tema que você só acompanha no conselho duas vezes por ano. É um tema que no cotidiano tem atenção e se desdobra em iniciativas.
6. Os riscos cibernéticos vêm crescendo muito também por causa da adoção de IA generativa. Como esse tema vem sendo abordado pelos conselhos?
É um objeto de preocupação enorme. Todo mundo muito alerta para isso. Mas o foco mesmo, o acompanhamento de planos, correção de problemas e investimentos é nos comitês de auditoria e de riscos, aí é que de fato a gente dedica bastante tempo para olhar no detalhe. Hoje ninguém pode se dizer protegido o suficiente. A frase comum é “a questão é quando, e não se você vai sofrer com risco cibernético”. Tem que ter uma atenção grande, investimentos permanentes e ninguém pode ser otimista. Muito antes até da inteligência artificial, o maior problema no tema de risco cibernético é o crime, já que os ataques se tornaram uma atividade criminosa bastante lucrativa, com pedido de resgate para liberação de ambientes de dados, e problemas gigantes que empresas já enfrentaram por conta disso.
Em relação à inteligência artificial, mais do que o risco é a oportunidade, o melhor que se faz é trazer para a estratégia do negócio, com todos os guardrails e cuidados que precisam existir de proteção das informações sensíveis, privacidade de dados por conta de uso de modelos de mercado. É uma ferramenta poderosa demais para ser ignorada e há bastante apetite de explorar ao máximo na forma mais responsável possível.
7. Além da IA, outras novas tecnologias estão sendo discutidas?
A modernização dos ambientes tecnológicos e o uso de tecnologias mais ágeis melhoram a competitividade na medida em que são mais rápidas para serem desenvolvidas, chegam mais rápido no mercado e te permitem ter diferenciais em relação aos concorrentes, oferecer melhores experiências para os clientes.
Os criptoativos, por exemplo, hoje são tratados quase como produtos financeiros. Mas no mundo da infraestrutura de negócios, o uso da blockchain ou de finanças distribuídas, que é o espírito da blockchain como chassis para negócios, isso eu não vejo ainda tendo relevância, nem viabilidade, ainda precisa se provar viável e ágil. Mas existem pilotos, para não perder de vista qualquer desenvolvimento interessante.
8. Como o crescimento da IA generativa está impactando a visão dos conselhos sobre carreira, talentos e cultura organizacional? Chega a ser um tema de risco?
O perfil do profissional que é preciso atrair está mudando muito. Muito do que se discute é a substituição do profissional mais no início de carreira por um agente de inteligência artificial, apoiando um profissional mais sênior. Esse é um dado do cenário. As empresas hoje estão buscando atrair quem tem habilidades com temas de tecnologia e condição de usar a inteligência artificial. Cientistas de dados ficam muito demandados.
Ainda não é um tema de risco emergente, mas certamente preocupa todo mundo ter os profissionais certos para enfrentar e se beneficiar dessa nova fase que não sabemos muito bem onde vai dar.
9. Quais outras tendências e prioridades em compliance e auditoria?
Os riscos operacionais e os financeiros, ter certeza de reportá-los adequadamente de acordo com as normas, ter certeza de que os controles dentro da empresa funcionam para a produção dessa informação fidedigna, verdadeira e que dê confiança também para o conselho de que o que se está publicando em nome da empresa é a verdade. E para isso precisa ter profissionais dentro da companhia que ajudem a manter esses controles funcionando e garantir a adequação do resultado da informação que sai na ponta. Ter uma auditoria interna que funcione bem é essencial.
No caso do setor financeiro, a prevenção de fraudes é um tema muito quente, que estamos vendo na primeira página do jornal todos os dias nas últimas semanas. Um insumo bem útil é ter um canal de denúncias, e avaliar todo tipo de denúncia que chegar. Não só garantir que os problemas estão sendo tratados, mas que haja consequência para comportamentos inadequados. Também como sinalização da cultura e da ética da casa, e dos insumos que esse tipo de mecanismo pode trazer. E acompanhar programa de compliance, de privacidade de dados para cumprimento das legislações.
10. Quais indicações culturais ou fonte de conteúdo que julgue relevantes e que possam auxiliar seus pares a refletir acerca dos desafios atuais da posição de conselheiro(a)?
Eu me interesso bastante por entender as dinâmicas do crime, e daqueles que se desviam, porque acho que é importante, é um tipo de radar que a gente não pode deixar de ter. Um livro que eu achei super interessante é Why They Do It: Inside the Mind of the White-Collar Criminal (do autor Eugene Soltes – Por que eles fazem isso: dentro da mente do criminoso de colarinho branco, na tradução livre, publicado em 2016). Fala de várias fraudes financeiras e analisa os casos.
Acompanho várias newsletters, algumas são de governança, economia e antitruste, que é um problema grande para o mundo, com os maiores dominando mercados, e acho que é ruim para a economia, para a concorrência e para os consumidores.