1. Como foi a sua jornada até se tornar membro de Conselho de Administração?
Eu trabalhei 19 anos no grupo Volkswagen e a primeira posição como CEO também aconteceu no grupo. Eu retornei da Alemanha depois de 3 anos na matriz, com a responsabilidade de conduzir a operação da Audi no Brasil. Um pouco mais de 6 meses depois, em 2009, veio o primeiro convite para integrar um Conselho, o da Volkswagen Financial Services – braço financeiro das operações do grupo. Logo em seguida, cerca de 6 meses depois, no meu segundo ano como CEO, em 2010, recebi o convite para integrar o Conselho de Administração da GOL Linhas Aéreas. Esse foi o primeiro desafio como conselheiro independente. As duas carreiras aconteceram de forma paralela, a de CEO e a de conselheiro. Dois anos depois veio o convite para assumir como CEO da GOL, sucedendo o fundador da empresa que tinha sido até então o primeiro Presidente, Constantino (de Oliveira) Júnior, que assumiu a posição de chairman. Com o passar dos anos, fui recebendo outros convites para Conselho e para Comitês. Eu acabei reduzindo um pouco, tão logo eu voltei do período sabático, que não foi muito sabático porque acabei aceitando mais Conselhos e mais Comitês. Mas agora, retomando a função executiva, tenho reduzido um pouco para poder harmonizar a agenda.
2. Quais temas você dedica a maior parte do seu tempo enquanto conselheiro?
Governança em geral, estratégia, gestão, gente e cultura, produtização, NPS (índice de satisfação e lealdade do consumidor). Em produtos, o CEO, os executivos e, por vezes, o próprio Conselho, tendem naturalmente a ter uma visão um pouco edulcorada, açucarada sobre seus serviços, porque estão convivendo com a organização e passam a ter uma perspectiva própria, que não necessariamente é a mesma do cliente final ou do mercado. Eu vejo o Conselho atuando como uma espécie de ouvidoria crítica da própria companhia no que diz respeito a seus produtos e serviços, e vejo que é uma contribuição muito importante porque vai ao encontro da necessidade de preservar e organizar o ponto de vista do cliente final. Para trabalhar na indústria automobilística, para citar um exemplo mais distante, é natural atrair pessoas e profissionais com alto nível de afinidade, vocação e interesse por automóveis.
A visão de um engenheiro na construção de um carro não é necessariamente aquela que será levada em consideração pelo cliente na escolha do modelo. Podem ser pontos de vista com escalas de priorização muito distintas. Eu me lembro de um executivo da engenharia em um esforço orgulhoso para tornar o nível de qualidade da pintura muito superior ao da concorrência, alegando uma vantagem competitiva que se converte em uma durabilidade de cinco anos maior. Um carro que normalmente duraria 15 anos passaria 20 sem corrosão, sem uma aparência deteriorada da pintura. Na prática, são raríssimos os clientes que levam esse aspecto em consideração na compra de um veículo zero quilômetro. Eu estou dando um exemplo apenas para ilustrar a importância do Conselho permanecer com o olhar calibrado e, consequentemente, gerar questionamentos ou pontos de reflexão sobre o eixo prioritário: o que, de fato, é apreciado, valorizado, utilizado pelos clientes?
É óbvio que não cabe a um Conselho produtizar, mas acho que oferecer uma crítica qualificada, honesta, embasada. Isso, a meu ver, só é possível se o conselheiro tiver a disposição de se dedicar a campo, a mercado, a conhecer o cliente na ponta, para poder fazer uma contribuição qualificada. Eu, normalmente, me disponho a realmente estar com alguma frequência no campo para ter essa sensibilidade melhor calibrada.
3. Diante do aumento dos riscos climáticos, cibernéticos e geopolíticos, quais são as principais responsabilidades de um Conselho de Administração para mitigar ao máximo possível os riscos e conseguir lidar da melhor forma com cenários de alta volatilidade?
O Conselho tem o papel de se certificar que, através de processos de gestão, decisão e governança robustos, se tem uma adequada avaliação do cenário de risco, e uma capacidade exploratória do corpo executivo, no que diz respeito às possibilidades, às referências de mercado e aos riscos. É necessária uma inquietude permanente quando se fala de prevenção a riscos, mitigação e segurança. Eu acho até que no Brasil, a gente tem um grupo executivo mais vocacionado, dada a volatilidade natural e instabilidade das principais variáveis às quais nós estamos acostumados. Acredito que essa inquietude é quase um traço natural. Esse aspecto é mandatório explorar da maneira adequada para preservar a musculatura da empresa, se proteger o máximo possível desses riscos – isso sim é trabalho de Conselho.
4. Com sua experiência em setores historicamente desafiadores, como você vê o papel do Conselho em situações como a de uma crise corporativa? Que práticas os Conselhos podem adotar para apoiar a gestão e proteger os interesses dos stakeholders?
Talvez seja esse um dos momentos de maior protagonismo necessário no papel de conselheiro independente. Exercer essa qualificação ao máximo: com isenção, disposição de um nível de aprofundamento e de robustecimento das decisões ainda maior. Essa postura responsável, de crítica construtiva, é de grande contribuição uma vez que em uma crise corporativa a companhia continua operando e deve se manter centrada. E todos os outros deveres fiduciários do Conselho Independente, como, por exemplo, maximizar o resultado diante das circunstâncias, continuam válidos. Então, essa independência também passa por se certificar que as medidas a serem tomadas não têm um efeito deletério no processo de gestão da companhia. E, finalmente, o Conselho Independente também deve colaborar com a sensatez das decisões que normalmente se consegue ter quando há equidistância de todos os interessados, para que não haja um viés, um pendor, porque, afinal, o que se deseja preservar realmente são os interesses combinados dos stakeholders, que em muitos casos são conflitantes e há que se fazer algum tipo de arbitragem, mas, obviamente, o critério é o de preservação, de valor da organização e de proteção da empresa como um todo.
5. Como o papel dos Conselhos de Administração deve evoluir nos próximos anos, na sua opinião, para acompanhar as mudanças nas expectativas dos stakeholders e na dinâmica de mercado?
É quase impossível responder isso sem falar um pouco sobre a minha percepção pessoal em relação à capacitação e qualificação para debates de uma maneira geral. Esse desafio para qualquer pessoa hoje de se posicionar, de se situar, de ter uma opinião educada é bastante prejudicado pela superficialização dos temas. O nível de acesso à informação que nós temos hoje, na era da internet e da tecnologia de informação, é uma benção, uma fortuna. No entanto, um efeito colateral inegável dessa profusão de informações oferecidas de forma sintética, às vezes rasa, porém revestida de credibilidade, faz com que a gente muito rapidamente hoje se apresente – no debate familiar, em casa, ou eventualmente numa grande corporação – como suficientemente qualificados e fundamentados para praticamente todas as discussões.
Isso me causa um certo espanto, falando de eventos recentes, a quantidade de pessoas hoje “especializadas” no conflito do Irã com Israel, na Palestina, na Guerra da Rússia, no Ozempic, no efeito das redes sociais... Quando existe a rara disposição para um debate genuinamente interessado em qual há fundamentação por trás dessas afirmações, eu tenho tido uma certa frustração de constatar que boa parte disso vem do conhecimento que se cabe em 140 caracteres ou ainda a manchete que estava na homepage de algum site importante de notícias. Eu acho que é um desafio hoje da humanidade, mas em especial do Conselho e das empresas, como a gente preserva esse espírito de informação qualificada com profundidade.
Vejo agora com uma certa apreensão o hype sobre o tema Inteligência Artificial: há muitas afirmações e cases, que no fundo produziram até agora pouca disrupção, muito menos do que está sendo alardeado. Potencialmente, acho que a IA pode ser ainda mais impactante do que foi o advento da planilha de Excel, da internet, do WhatsApp e de todas essas inovações tecnológicas digitais dos últimos 50 anos, que nos permitiram dar saltos incríveis de produtividade e de efetividade. A IA vai partir desse patamar, mas até agora é impressionante a quantidade de palestras, workshops, para comunicar não muito mais do que eu acabei de trazer aqui.
Há dois ou três anos atrás, a profecia da vez era o metaverso. “Os clientes todos vão para um ambiente virtual, com avatar”, diziam. Havia uma convicção quase generalizada de que isso seria algo extremamente predominante no futuro que estamos vivendo hoje. Esse movimento de “manada” tende a se comportar de maneira pendular. Veio a agenda ESG numa onda forte e muito bem-vinda nessa direção. Com certeza, alguns movimentos e retóricas extremadas acabaram por desqualificar a pauta, lamentavelmente. E agora estamos no movimento do pêndulo na outra direção, o anti-woke. Provavelmente no exagero, gerando retrocessos que são igualmente inexplicáveis.
Vejo que esse é um papel importante do Conselho, talvez um dos mais clássicos, de procurar buscar o que é difícil: o ponto ótimo entre manter a empresa na vanguarda, lendo corretamente o zeitgeist, o espírito do tempo, mas evitando que ela vá na carona empolgada de um movimento que tende a gerar entropia – muita fricção, muito calor, muita espuma e pouca atração. Hoje esse é um grande desafio social do planeta. E se adicionar, a polarização vigente, não há mais disposição para o debate de qualquer coisa que seja minimamente contraditória de ponto de vista, porque rapidamente isso é antagonizado ao extremo: esquerda, direita, bolsonarismo, lulismo, woke, anti-woke... As empresas, perigosamente, acabam emulando essa dificuldade de haver um debate mais aprofundado e acho que o Conselho tem um papel curador, moderador e habilmente ambidestro. Em alguns momentos, pode provocar aceleração de algo que pode estar sendo subestimado, subavaliado, ou ainda uma saudável pausa para um aprofundamento reflexivo de se entender onde realmente a agenda daquela empresa deve estar.
6. Você teria indicações culturais e de fontes de conteúdo relevantes para auxiliar seus pares a refletir acerca dos desafios do Conselho?
Eu pessoalmente gosto bastante das biografias, especialmente aquelas onde o biografado tenha muita disposição de falar sobre os erros e atribuir a dose correta de responsabilidade para o resultado nas circunstâncias, ou no acaso, ou na sorte, ou na oportunidade. Não necessariamente a melhor contribuição é emular esses comportamentos de genialidade. Mais genuíno e efetivo é quando voltamos para o mais alcançável, atingível, palpável, que é a sabedoria que a gente normalmente recebe de graça em casa, dos nossos avós. Boa parte das melhores respostas bebem de fonte de conhecimento ancestral, e milenar. “Deus ajuda quem cedo madruga”. Tenho uma lista! “Quem fala muito dá bom dia a cavalo”. “Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito, procurando compreender tudo e todos, um homem consegue, depois de mais ou menos 40 anos de vida, aprender a ficar calado.”
É realmente uma provocação que tem a ver com ética, moderação, dedicação, esforço. As empresas também sofrem de coisas como inveja, que segue o executivo. “A inveja é um veneno que você toma esperando que o outro morra”. Porque se acaba focando tanto na competição, lendo no jornal que alguém tem a taxa de crescimento de 150% ao ano, em vez de procurar o aprimoramento em si próprio, na sua musculatura. Tem tanta gente que aloca mais tempo para conhecer a outra empresa do que a própria. A minha avó também falava: “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”. Ou ainda: “Quanto mais alto você deseja chegar, mais profundas devem ser suas raízes.” Eu tenho procurado fazer esse tipo de provocação até para que haja um melhor uso do recurso da empresa.