Pela primeira vez no mundo, as fontes de energia renovável ultrapassaram o carvão na geração de eletricidade, de acordo com relatório recente do think tank de energia Ember, que analisou o primeiro semestre deste ano. O resultado deve ser creditado em grande parte à China e Índia, que têm investido bastante nas fontes eólica e solar. Ainda segundo a pesquisa, a participação das energias renováveis na eletricidade global subiu para 34,3% nos primeiros seis meses de 2025, enquanto o carvão caiu para 33,1% e o gás natural se manteve em 23%.
“A geração de energia é a maior responsável por emissões de gases de efeito estufa em todo o mundo, mantendo uma liderança folgada em relação às outras fontes de emissão. Essa agenda da transição energética está entre as mais importantes da COP30, dando sequência aos compromissos firmados no global stocktake da COP28”, diz Thelma Krug, ex-vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) e atualmente líder do comitê científico da COP30. “Os compromissos para redução dessas emissões estão reunidos nas NDCs (Compromissos Nacionalmente Determinados, na tradução para o português), que, de forma geral, carecem de efetividade ou implementação. A questão é que, pela própria construção do Acordo de Paris, as NDCs precisam ser cada vez mais ambiciosas, com as novas versões superando as metas das anteriores. Chega um ponto em que naturalmente trava esse avanço”, completa.
Confira abaixo a entrevista na íntegra.
1) Quais são suas expectativas para a COP30?
THELMA: É hora de implementação do que foi definido nas COPs anteriores, conforme destacou o embaixador e presidente da COP30, André Corrêa do Lago. Já foram dadas mais de cinco mil sugestões para indicadores de adaptação às mudanças climáticas, e fechamos em cem indicadores que serão debatidos na COP deste ano. Eles vão servir para monitorar e orientar, em escala global, as ações de adaptação às mudanças climáticas, principalmente nos países mais vulneráveis e/ou sujeitos a esses efeitos.
Precisamos também discutir o conceito de justiça climática porque ele não é muitas vezes entendido corretamente. Nos últimos tempos, trouxemos para o vocabulário termos como equidade, transição justa e justiça climática, juntando-se a outros já conhecidos, como redução das desigualdades. Mas precisamos abordá-los em profundidade para deixar claro o que pretendemos. Alguns dizem que equidade, por exemplo, se trata de balancear mitigação e adaptação em termos de financiamento, trazendo uma realidade de divisão equitativa de recursos.
A COP é o momento ideal para esses debates, ainda que historicamente tenhamos visto uma dificuldade grande de obter consenso, o que inviabiliza por vezes a implementação de medidas fundamentais para o combate às mudanças climáticas. De qualquer forma, sou otimista e considero que temos boas possibilidades de avançar nos seis temas básicos e 30 objetivos-chave definidos pelo embaixador André para esta COP.
2) Como o Brasil se posiciona na agenda climática?
THELMA: É aqui que entra um pouco do conceito de justiça climática. Os países em desenvolvimento com florestas tropicais, como Brasil, República Democrática do Congo e Indonésia, estão orientados, também por causa do global stocktake definido na COP28, a buscar reverter o desmatamento, parar de desmatar. O Brasil inclusive se comprometeu a zerar o desmatamento. Esse compromisso de fazer um grande esforço para manter parte significativa da floresta em pé não apenas auxilia a agenda do clima como tem um papel social importante de regulação do ciclo hidrológico, combate à desertificação e manutenção da biodiversidade, o que significa que não estamos fazendo somente para a humanidade, mas para nós mesmos como país.
O conflito passa a ocorrer, fazendo parte dessa ideia de justiça climática ou, como costumo dizer, injustiça climática, quando surge a oportunidade de explorar combustível fóssil na Foz do Amazonas. Como cientista, não quero que essa exploração ocorra, mas, olhando para o desenvolvimento social resultante dessa atividade econômica, vejo que serão geradas oportunidades de emprego e de crescimento para a região, que sofre com baixos índices sociais e de progresso.
Devemos lembrar como parte dessa discussão que os países desenvolvidos já exploraram muito a natureza – e continuam explorando – com suas economias baseadas nos combustíveis fósseis. Está claro que eles continuarão produzindo combustíveis fósseis enquanto houver demanda, abrindo novas plantas para isso. Se os países em desenvolvimento, que já estão comprometidos em relação ao desmatamento, ignorarem oportunidades como essa da Foz do Amazonas por causa da agenda do clima, eles teoricamente estarão dando um quinhão muito maior de contribuição do que os desenvolvidos. E, mais uma vez, do ponto de vista científico, sou contra essa exploração da Foz do Amazonas, mas vejo que há motivos econômicos suficientes para isso.
Ainda nessa lógica de justiça climática, uma forma de compensação por parte dos países desenvolvidos seria no mínimo contribuir para manter as florestas em pé dos países em desenvolvimento. Esse será justamente um dos debates da COP30, com um fundo para conservação dessas florestas liderado pelo Brasil, além de outro correndo em paralelo para reflorestamento ou restauração.
3) Como a sociobioeconomia se insere nesse contexto?
THELMA: A sociobioeconomia cria oportunidades para as comunidades ribeirinhas e para os povos originários a partir da exploração sustentável da floresta amazônica. Tudo que acontece nessa região tem que ser conquistado pelos amazônidas. Nós, de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Brasília, temos o costume de dizer o que deve ser feito por lá. Não deveríamos fazer isso, já que os amazônidas sabem muito melhor do que nós sobre isso, com excelentes pesquisadores e profissionais que conhecem a fundo a realidade dessa região, incluindo as particularidades dos insumos obtidos da floresta amazônica e suas cadeias produtivas.
É por isso também que gosto de a COP ser em Belém, no Pará, um estado da Amazônia Legal. Essa é uma região que precisa ser desenvolvida e de forma sustentável. Estive duas vezes em Belém e já pude perceber sua riqueza, observando inclusive os diversos eventos promovidos pela cidade. Com essa imensa oportunidade de organizar uma COP, a região estará preparada para promover outros eventos dessa magnitude.
Estou, portanto, bastante otimista com a COP30 em Belém e considero que os resultados serão positivos. É preciso lembrar que a COP vai muito além do momento de reunião dos países durante os dias do evento. Isso porque a COP se estende na prática por um ano inteiro até que a próxima seja realizada. É nesse período que pontes são construídas para viabilizar a implementação do acordado – inclusive com o comitê científico apoiando o embaixador nesse processo. Afinal de contas, a COP só muda efetivamente de sede quando ocorre a troca do bastão – quando o presidente de uma COP entrega para o próximo a tarefa de prosseguir com a realização do evento. O embaixador se cercou de excelentes cabeças pelo lado da ciência, da ética, da tecnologia, da inovação e do financiamento, podendo juntar todo esse conhecimento e toda essa experiência para tomar as melhores decisões.
4) Por que a senhora considera que as NDCs carecem de efetividade?
THELMA: O Brasil atualizou sua NDC em 2024 junto com EUA (que fizeram isso no governo Biden já imaginando que poderia haver vitória do Trump, resultando no retrocesso da agenda de sustentabilidade), Japão, Reino Unido, Canadá, Austrália e Etiópia. Estou fazendo um trabalho de olhar para as NDCs dos países do G20, que correspondem a cerca de 80% das emissões globais de carbono, e do BRICS+, tendo percebido que a minoria atualizou suas NDCs.
A questão é que, pela própria construção do Acordo de Paris, as NDCs precisam ser cada vez mais ambiciosas, com cada atualização superando as metas da versão anterior. Chega um ponto em que naturalmente trava esse avanço. Por isso, considero que as NDCs sejam, de forma geral, carentes de efetividade ou implementação. É preciso uma pausa para reflexão em torno desse assunto por parte do mundo, motivo pelo qual acredito que alguns dos países mais relevantes estejam demorando para fazer a atualização. Não quero acreditar que seja um boicote às NDCs.
A China, por exemplo, é um caso curioso. Ela vai na contramão desse raciocínio, preferindo se comprometer menos via NDC para fazer, no fim das contas, mais. O Brasil poderia aprender com o exemplo dela para cumprir na totalidade sua NDC. Eu me pergunto se realmente é factível imaginar que nossas emissões de energia vão diminuir. Isso porque temos visto que as estiagens provocam uma situação de acionamento das usinas térmicas para dar conta da demanda de energia. Também não vejo que nossa agricultura diminua suas emissões, já que o Brasil, apesar das mudanças que a política tarifária dos EUA possa causar, continuará aumentando sua produção agropecuária.
Os países estão, portanto, enfrentando um dilema: se colocam ambições baixas nas suas NDCs, eles são criticados pela sociedade civil e no contexto internacional. Mas se colocam ambições altas nas NDCs, não estão conseguindo dar efetividade a elas, sendo posteriormente criticados por causa disso. O que é pior: ser criticado no início por falta de ambição ou depois por não cumprir sua NDC? É também por isso que precisamos de um padrão global para as NDCs, a fim de que possamos mensurar se as metas são arrojadas ou conservadoras, se são factíveis ou não, para o período estabelecido.
No momento, apesar de todos os países considerarem que estão fazendo sua parte, dando seu quinhão por meio das NDCs, a realidade é que, ao fazer uma análise global padronizada, somente o Reino Unido está em dia com seus compromissos de NDC.
*Este texto faz parte da série “COP30: A sustentabilidade como valor de negócio”, com entrevistas sobre os setores econômicos que estarão em destaque na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Leia as entrevistas anteriores:
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