A transformação das matérias-primas da Floresta Amazônica em produtos de valor agregado está sendo apontada como a solução para frear desmatamento e outras atividades que ameaçam esse bioma. Chamada de sociobioeconomia, essa lógica de mercado une conhecimentos científicos e ancestrais para criar soluções inovadoras que agreguem valor econômico, cultural e ambiental aos produtos da floresta.
“Os protagonistas disso precisam ser os negócios comunitários dos povos que tradicionalmente manejam a floresta de forma sustentável, como ribeirinhos, quilombolas, agricultores familiares e indígenas”, disse Ismael Nobre, presidente do Instituto Amazônia 4.0, que palestrou em painel da EY House durante a COP30. “Essa lógica de mercado protegerá a floresta em um momento de pressão sobre esse bioma que pode resultar no ponto de não retorno com eventos catastróficos em escala global. Já está em andamento o processo de savanização no sul e sudeste da Amazônia, o que pode levar a floresta no cenário mais grave a sumir quase totalmente.”
Ainda segundo o especialista, a restauração da floresta é urgente para se afastar desses danos irreversíveis causados por um possível ponto de não retorno. “Até 2100, se nada for feito em relação à reversão do desmatamento, resultando na perda de 25% da cobertura original da Amazônia, mais de 11 milhões de pessoas na região norte estarão expostas ao risco extremo do estresse térmico, que é quando teremos atingido os limites da adaptação fisiológica do corpo humano”, completou. A floresta funciona como o ar-condicionado da natureza, com as folhas resfriando o ambiente, motivo pelo qual as temperaturas são mais baixas dentro do bioma. “Se acabar com a floresta, o mesmo vai ocorrer com os rios voadores, que são centrais para a manutenção do ciclo de chuvas no Brasil e em outras regiões do planeta.”
Para Paulo Nobre, pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o conhecimento da ciência sobre o funcionamento da natureza ainda é muito inicial. “Nossa ciência continua infantil nesse sentido, ainda que tenhamos avançado nos últimos anos. Descobrimos apenas recentemente os motivos para chover na Amazônia, enquanto as populações originárias já sabem há muito tempo”, destacou. Isso mostra o quanto esse conhecimento deve ser valorizado – ao contrário do que efetivamente acontece. “Temos muito a aprender com os povos originários, começando pelo respeito à natureza e ao conhecimento das gerações anteriores.”
Construção de biofábricas
Nesse contexto da lógica de mercado, o projeto do Instituto Amazônia 4.0 tem como foco criar biofábricas 4.0 em territórios quilombolas e indígenas, transformando matérias-primas em produtos de alto valor agregado e com emissão negativa de carbono. Do ponto de vista de balanço da emissão de carbono, a produção do chocolate advindo do cacau da Amazônia será negativa – ao contrário dessa indústria como um todo, que depende bastante do transporte, já que sua matéria-prima vem de muito longe. “Além de toda a distribuição de renda e proteção dos biomas e das culturas dos povos originários, estaremos contribuindo para a redução das emissões de carbono”, disse Ismael. A expectativa é que esse empreendedorismo baseado nas cooperativas e associações locais gere um ecossistema de novos negócios, que produz a partir de soluções tecnológicas e metodologias de cocriação com comunidades tradicionais.
Para superar os desafios logísticos, de perecibilidade dos insumos e de comunicação encontrados na Amazônia, as seguintes soluções serão exploradas: drones de transporte, com potencial de reduzir percursos de três dias para duas horas; barcos movidos a hidrogênio, com produção local de hidrogênio líquido via painéis solares e eletrólise da água; máquinas inteligentes e conectadas, com controle e manutenção remota via IoT (Internet das Coisas) e redes Wi-Fi; e rastreabilidade, com uso de blockchain para garantir a origem e autenticidade do produto. O objetivo é que, em até seis anos, 100 famílias estejam participando do processo todo – entre produtores e colaboradores participando da confecção do chocolate a partir do cacau da Amazônia, com oportunidades privilegiadas para jovens e mulheres de populações vulneráveis.
“Aqui na floresta, a pesca e extração de polpa de frutas são as atividades que mais geram renda para os moradores. Agora, com a produção de chocolate, teremos mais uma opção para fortalecer nossa economia”, afirmou Uraan Anderson Suruí, professor, cacique e ativista, que também palestrou no painel promovido pela EY. “Esperamos tornar a região um polo de produção do chocolate de cupuaçu. Entre outros diferenciais está a origem amazônica que leva a cultura das comunidades e dos nossos povos para o produto em uma lógica econômica ligada à floresta.” Para isso, segundo o líder indígena, seu povo está se capacitando nesse processo produtivo, com busca de conhecimento e apropriação da tecnologia envolvida.
Espaço dedicado na gôndola
“Essa iniciativa conversa com o Programa Floresta Faz Bem, que destina um espaço da nossa gôndola para os produtos da floresta. Essa iniciativa integra a visão de desenvolvimento econômico, inclusão social e proteção da biodiversidade”, disse Julia Carlini, gerente sênior de sustentabilidade do Carrefour, que palestrou no painel da EY House. Na prática, o programa dá acesso ao mercado para esses produtores, contribuindo para gerar demanda pelos produtos. “Adaptamos nossa área comercial para incluir esse pequeno produtor por meio da revisão de políticas e da margem comercial, bem como algumas flexibilizações no processo de homologação”, disse a executiva. “O que fazemos é reduzir nossa margem para que esses produtos cheguem ao mercado a um preço competitivo”, complementou.
Na avaliação de Thais Fontanello, gerente sênior de cadeias de suprimentos resilientes e sustentáveis da EY Brasil, que fez a moderação do painel, trata-se de um ciclo virtuoso que contribui para manter a floresta em pé. “O consumidor participa desse processo ao fazer uma escolha consciente na gôndola, estimulando assim as práticas sustentáveis ao longo da cadeia produtiva que farão a diferença nas emissões de carbono”, disse.
*Este texto faz parte da série “COP30: A sustentabilidade como valor de negócio”, com informações sobre os setores econômicos em destaque na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Leia as reportagens anteriores:
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